Etnografias Audiovisuais e Fotográficas da Arquitetura Vernácula

As formas culturais e técnicas construtivas da morada popular motivaram estudos e uma parceria entre documentaristas na produção de narrativas sobre os modos de habitar em certas paisagens no Brasil. Em 2018, passados vinte anos do lançamento do primeiro fruto desta experiência, abrimos este canal para difundir os documentários produzidos, mas também desenhos e fotografias que compõem assim um acervo representativo de uma trajetória conjunta.

 

Breve histórico

Nos anos de 1990, um acervo documental constituído de gravações em vídeo e fotografias sobre arquitetura vernácula e suas técnicas construtivas, ainda vivas na memória e nas práticas de certas comunidades tradicionais interioranas e litorâneas no Brasil, foi iniciado a partir de estudos desenvolvidos na região do Vale do Ribeira por Silvio Luiz Cordeiro, estudante na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, com orientação de Carlos Zibel Costa.

Casa em taipa de mão próxima a Iporanga desenhada durante viagem de estudo ao Vale do Ribeira em 1993. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

Nascia assim um projeto de iniciação científica sobre a habitação em comunidades rurais naquela região, estimulando a participação de outros estudantes no grupo de estudos Alto Ribeira: Identidade e Desenho, ativo entre 1993 e 1996. No ano seguinte, por incentivo de Luiz Bargmann, coordenador do Laboratório de Vídeo da FAU USP (VideoFAU), um documentário baseado neste projeto foi produzido: Taipa de Mão – Casa de Caboclo, vídeo premiado em 1998 pelo Museu da Imagem e do Som.

Desenho de uma antiga residência, situada à margem esquerda do Rio Ribeira, realizado em 1993 durante viagem de estudos. A antiga casa, construída no século XIX, foi destruída em uma das enchentes do rio em fins do século XX. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

A fotografia de 1997 mostra a equipe do VideoFAU durante a gravação de Taipa de Mão – Casa de Caboclo, documentando agora em vídeo a mesma casa estudada anos antes por Cordeiro.

O reconhecimento na FAU USP da importância de se documentar as técnicas construtivas e o modo de vida das comunidades que as praticavam, motivou a continuidade da parceria entre Cordeiro e a equipe do VideoFAU. Com a perspectiva promissora de apoio, ampliava-se a geografia de estudos para abranger uma extensa zona litorânea, com levantamentos preliminares indo da Ilha de São Sebastião até a Baía de Paranaguá, mas com ênfase no Litoral Sul de São Paulo.

Muito cedo, ao nascer do Sol, pescadores levam suas canoas para o mar. A fotografia de 1999 foi produzida durante a gravação deste momento em Ilha Comprida para o documentário Vida Caiçara. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Assim, em 2000, foram lançados mais dois documentários — Velhas Paredes de Pedra e Cal: Ruínas no Tempo; e Vida Caiçara (premiado no II ECOCINE) — ambos com apoio do Instituto Oceanográfico da USP e do Instituto Florestal do Estado de São Paulo. Três anos depois, um novo projeto foi elaborado, ampliando-se o acervo, desta vez a partir de levantamento preliminar realizado por Luiz Bargmann no Norte do Maranhão. Com base neste levantamento, selecionamos a região dos Pequenos Lençóis Maranhenses para gravar em comunidades tradicionais ali situadas, principalmente aquelas ao longo de vias que margeiam os rios — como o Rio Novo (Rio da Fome) e o Rio Carrapato — além dos vários povoados no caminho entre os municípios de Paulino Neves e Tutóia.

Morador em sua casa de taipa de mão coberta com folhas de Buriti, habitante de uma comunidade próxima de Tutóia Velha, Maranhão. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Este acervo documental foi ampliado e diversificado, ao longo de pouco mais de duas décadas, com documentários que abrangem, além da arquitetura vernácula, certas referências arqueológicas do povoamento paleoindígena e ruínas do período colonial, até o fenômeno resultante de processos migratórios históricos que, nas grandes cidades brasileiras, influem na expansão urbana periférica, expressa nas paisagens construídas pelas pessoas que deixaram seus sítios de origem a procura de trabalho.

Antes da chegada das chuvas de fim de ano, olarias efêmeras são montadas à beira-rio para produzir tijolos furados. A fotografia mostra o resultado após a queima, processo documentado em vídeo no Norte do Maranhão. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Nestes anos de parceria, as pesquisas prévias nos levaram ao encontro de certas comunidades que construíram formas específicas de habitar, caracterizadas pela rusticidade da subsistência.

A antiga técnica de produzir cal a partir de conchas queimadas ainda estava viva na memória dos habitantes mais velhos de Cananéia, Litoral Sul de São Paulo. A fotografia mostra uma caieira, especialmente reproduzida para ser documentada durante as gravações de Velhas Paredes de Pedra e Cal. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

As técnicas construtivas vernáculas da habitação compreendem saberes muito antigos e também revelam intercâmbios havidos nas dinâmicas que transformaram ambientes em paisagens humanas, sobretudo pela mestiçagem — de corpos e culturas — havida na história da vivência entre etnias indígenas, africanas e européias no território compreendido pelo Brasil, a partir da colonização portuguesa iniciada há cinco séculos.

Ruínas de antiga construção em alvenaria de pedra e cal encontrada na Ilha do Cardoso e mostradas à equipe por Adão, pescador que habita a Ilha Filhote. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Formas culturais inscritas em paisagens construídas ao longo do tempo. Ao indaga-las, muitas vezes redescobrimos evidências de outras culturas humanas que elas abrigam, vestígios de habitantes muito anteriores, que viveram nos mesmos lugares. Daí os remanescentes que a arqueologia revela nos sítios hoje povoados por índios, caboclos, caipiras, quilombolas, caiçaras, sertanejos, ribeirinhos.

No interior de uma casa na Aldeia Guarani M’Byá em Pariquera-Açú, Vale do Ribeira, Luiz Bargmann ajusta o monitor para apresentar à comunidade indígena as gravações produzidas durante uma das viagens realizadas pela equipe à aldeia. Em pé, Antônio Gonçalves da Silva na assistência técnica. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Pessoas que habitam terras ancestrais, onde residem suas identidades, lugares onde exercem formas de resistência. Entre elas, as que continuam a deixar seus lares de origem para construir outros novos, mais distantes e incertos, ao migrarem para alguma metrópole. Contudo, na bagagem de vivências, levam consigo tudo aquilo essencial da experiência aldeã anterior, marcada pelo labor da subsistência. Quando os chamados retirantes chegam às grandes cidades, reproduzem a cultura solidária de suas origens ao habitarem territórios urbanos ditos marginais — seja pela conformação periférica, isto é, à margem; seja por expressar a situação de exclusão social e violência à ela inerente. Tais narrativas audiovisuais, vistas em perspectiva, representam um complexo contexto de mudanças, já muito evidentes na época de nossas gravações, ao confrontarmos paisagens humanas singulares, em ambientes contrastantes — rural / urbano / metropolitano — transformados por atividades e ritmos muito distintos a gerações.

Casa de adobo encontrada no interior da Paraíba, em sítio próximo à Cabaceiras, nos Cariris Velhos. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Durante esse tempo da parceria com o VideoFAU, nasceram documentários e ensaios fotográficos que tratam de ambientes construídos no passado; mostram o fenômeno das periferias urbanas contemporâneas; e, principalmente, documentam a arquitetura vernácula em paisagens arcaicas de um universo cultural que, sob influências externas e o impacto de distintas pressões — mas, sobretudo, pelo acesso necessário a outro contexto tecnológico que facilita a vida diária em comunidades que permaneceram, até recentemente, em relativo isolamento — tende a se transformar profundamente ou mesmo a desaparecer em certas áreas do Brasil, como naquelas documentadas.

A grade utilizada na produção de tijolos furados documentada no Maranhão. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

A pesquisa de campo e a produção das gravações, desde o início desta trajetória documental da arquitetura vernácula, não se restringiram ao registro das técnicas construtivas em si, com seus procedimentos em etapas componentes precisas, os instrumentos utilizados e as matérias-primas processadas. A perspectiva foi mais aberta, de um olhar mais amplo para compreender tais técnicas no âmbito da vivência das pessoas em seus lugares. Neste sentido, o audiovisual é um importante recurso à documentação e representação para se descrever não apenas determinadas tecnologias envolvidas na construção da morada, isto é, apresentar as respectivas técnicas em ação, por assim dizer. Mas, sobretudo, para se representar a dimensão humana do ato de habitar e construir lugares específicos, então expressos em paisagens culturais que se revelam arcaicas.

Um morador de Rio Novo produzindo adobo em seu quintal. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Por isso, não se tratava de gerar apenas imagens substancialmente técnicas e descritivas para se evidenciar componentes de repertórios tecnológicos muito antigos e ainda presentes, seja na prática, seja na memória daqueles mestres construtores ainda vivos ou de seus descendentes, mas sim de produzir registros das ações e dos gestos, e que tais registros representassem as técnicas construtivas no íntimo de contextos próprios, nas paisagens que se caracterizam pela rusticidade da cultura e dos meios, pela subsistência sem depender — ou com muito pouca dependência — de outros recursos que não apenas aqueles ali disponíveis e processados por antigas práticas reproduzidas a gerações pelos membros da comunidade.

Parte da estrutura de uma casa com paredes não estruturais que serão preenchidas com barro, pela técnica da taipa de mão. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

Na medida em que certos saberes ainda são — ou foram, até recentemente — transmitidos entre gerações que construíram suas moradas em lugares habitados há muito tempo, encontrar estes mestres construtores ou seus descendentes no presente de profundas mudanças em marcha, era urgente para constituirmos um acervo memorial sobre as antigas culturas do habitar. Tal propósito motivou a parceria na produção audiovisual dedicada a documentar as técnicas construtivas nos lugares e contextos culturais em transformação.

Em 2018, vinte anos do lançamento de Taipa de Mão – Casa de Caboclo, a equipe novamente reunida. Da esquerda à direita: Luiz Bargmann, Rose Pan Moraes, Silvio Luiz Cordeiro e Antônio Gonçalves da Silva.

Essa produção de conhecimento realizada no âmbito de uma faculdade de arquitetura e urbanismo no Brasil, por uma equipe específica de doutores e profissionais de vídeo e fotografia, ao longo de pouco mais de duas décadas, resultou em documentários que são utilizados por docentes da FAU USP, assim como em outras universidades e instituições culturais, bem como por educadores e jovens estudantes das redes de ensino. Trata-se de uma contribuição significativa, alinhada aos objetivos da difusão científica e cultural do saber elaborado no âmbito de uma universidade pública, considerando-se o usufruto didático e que ampara diversas atividades de ensino e debate de realidades culturais, socioambientais e econômicas do universo abordado a partir da arquitetura vernácula. Apresentamos assim uma trajetória de estudo sobre os modos de habitar, em etnografias audiovisuais e fotográficas.